sexta-feira, 22 de agosto de 2008

KI: A Energia Vital

O conceito orienta de Ki é muito difícil de definir. No Japão a palavra tem sido de uso quotidiano através dos séculos, desde que começou a infiltração da cultura chinesa. O Ki expressa o conceito das energias fundamentais do universo, das que formam a natureza e as funções da mente humana.

Na antiga China , como o Ki era a força que iniciava todas as funções físicas e psicológicas, o conceito de Ki ganhou um lugar na medicina, artes marciais, e em muitos aspectos da vida. Inicialmente utilizada com propósitos militares, diz-se que o conhecimento do Ki começou para determinar quando a força dos soldados estava no seu nível máximo, para, de acordo com ela, utilizar o movimento militar adequado. Posteriormente, o estudo do Ki desenvolveu-se até chegar a ser uma maneira prática de predizer o destino das pessoas por meio da habilidade do adivinho para julgar ou ler o Ki de uma pessoa.

A inter-relação entre a mente e o corpo não pode definir-se exclusivamente através do prevalecimento das leis naturais nem das experiências científicas. No Oriente, há já muito tempo que corpo e mente não existem como entidades separadas. Por isso, todos os aspectos da cultura oriental (a filosofia, a arte, as artes marciais, a medicina, etc.) esforçam-se por alcançar a vida universal através de uma compreensão empírica da união fundamental da mente e o corpo.

O mestre Shingeru Egami (Shotokai) explica-nos isto mesmo numa passagem do seu livro “Karaté-Do Nyumon”:
“O problema da mente é profundo. A sua elevação a um estado superior, a ampliação e a purificação de nós próprios, são as ultimas coisas conseguidas por meio da prática. É preciso treinar mente e corpo, pois de outra forma a prática não faz sentido. Tratem de limpar a vossa mente dos desperdícios da vida do dia-a-dia, por do contacto espiritual com os outros.
A mente e o corpo são como duas rodas de um carro, nenhuma delas tem preferência. Isto é prática autêntica. Obter alguma coisa de valor espiritual na vida é a verdadeira prática.
Entrando em contacto físico com os outros, também se entra em contacto espiritual. Na vida quotidiana é preciso chegar a conhecer as nossas relações com os outros, como cada um influi nos outros e como as ideias se intercambiam. É preciso respeitar os outros e pensar bem deles. As pessoas devem ser mentalmente abertas e respeitosas como bem-estar e a felicidade dos outros. Num combate, quando conseguirem transcender a simples prática, conseguirão ser um com o vosso oponente.”

O Ki unifica a mesma base da mente e do corpo e ao mesmo tempo tem uma relação recíproca com todas as coisas na fonte da criação. Todas as coisas vivas derivam do Ki, que se diz que enche o universo, nutre toda a criação com a sua presença omnipresente.

O Ki individual e o Ki da natureza estão unidos e influenciam-se reciprocamente. Por exemplo, quando dizemos que um dia com uma boa temperatura alegra o coração é porque o nosso Ki funciona em empatia (consonância) como Ki da natureza, que, por sua vez está em empatia com todas e cada uma das pessoas do mundo. Quando a mente e corpo são interpretados como duas individualidades, é difícil aceitar o conceito de que a mente e a matéria nasceram do mesmo Ki.

Keichi Mizushima expressa assim a empatia:
“A empatia não significa situar-se por cima dos outros; não significa implicar-se tanto como o outro que seja preciso rir e chorar juntos. Também não significa ser totalmente de acordo com o que se diz ou se critica. A empatia é o estado puro que é vivido antes de se formar qualquer tipo de julgamento. A empatia é fazer o esforço para sentir as emoções que estão presentes no outro, sem juízo de valor e do entendimento que pertencem a outra pessoa e não a nós mesmos.”

O Ki não é um a substância tangível, mas através da disciplinas orientais a visão da mente pode abrir-se a ele e pode sentir-se claramente a sua presença. O mestre das artes marciais não tem por si o menor indício de consciência para diferenciar entre isto e aquilo, quando se abre ao próprio espelho da sua alma. Mas como o espelho da sua alma é tão claro, que de facto ele vê tudo sem ver, distinguindo com exactidão sem distinguir. De novo, de maneira perfeita o mestre Shingeru Egami o descreve nesta passagem:
“Na prática quando o teu oponente der um golpe, deves já estar em movimento. Depois de o teres visto mover-se, já é tarde demais e um falso movimento da tua parte está fora do lugar, pois o golpe do teu oponente é quase mortal. Mover-se simultaneamente com o golpe; é preciso sentir a intenção do contrário. Mas na realidade, não é uma questão de usar a mente, é preciso mover-se naturalmente, sem pensar. Quando alcançares este estado, conseguirás mover-te simultaneamente com a ordem.
Se pensas muito sobre o começo do golpe contrário, não te aperceberás dos seus movimentos. Só quando a tua mente for tão aprazível como um lago de águas e estiveres fisicamente alertado, poderá aperceber-te dos movimentos do oponente e da sua respiração natural. Neste estado sentirás as mudanças nos sentimentos do teu oponente.”

Muitas culturas orientais baseiam-se neste conceito. No entanto, para os ocidentais o k é um conceito relativamente novo, e uma vez que existe uma forte tendência para intelectualizar tudo em termos de análise científica e cultural, o conceito do Ki, que é muito difícil de explicar inclusivamente linguística ou quantitativamente, não é fácil de entender.

Existe um Ki inato que está presente no princípio da vida no feto, enquanto que o Ki adquirido diz-se que se acumula externamente após o nascimento. Este Ki adquirido materializa-se em três tipos:
- TEM NO Ki: Ki da respiração e existente como ar.
- CHI KI: Ki da terra e existe como água e alimento.
- Ki dos MERIDIANOS: Base de toda a actividade vital.

Acredita-se que o Ki flui primeiro através do meridiano do rim, e esta é a razão pela qual nas artes marciais orientais o ponto de energia mais importante do corpo é o que corresponde ao dito meridiano; acredita-se que é o centro do Ki. Quando somos capazes de identificar e controlar este “centro”, em harmonia com uma unidade oscilante, que exala o ser mundo.

O Ki utiliza a mente e o corpo, integrando o consciente e o inconsciente. A influência do Ki nas funções da mente e do corpo dependem da imagem do mundo exterior que cada pessoa tem. Uma característica intrínseca ao ser humano é a crença de que vivemos por nossa própria volição; no entanto as nossas vidas são mantidas fundamentalmente por uma relação íntima com o Ki do mundo externo.

Esta imagem do mundo exterior cria quatro grupos de pessoas:

a) Aquelas em que a influência do Ki é nula porque estão tão apegadas à imagem do mundo exterior, que nunca abandonam essa característica intrínseca ao ser humano de acreditar que vive por própria volição.

b) Aquelas que se esforçam por conseguir o equilíbrio, mas procuram-no onde não o podem conseguir. Sentem o desacertado da sua atitude, estão convencidas da rectidão dos outros e esforçam-se por conseguir essa mesma rectidão. Mas estão tão apegados à sua atitude que no fundo não sabem o que é propriamente justo e o que é injusto, e ainda que aparentem sabe-lo. Por isso não podem transformar numa atitude justa o que reconhecem como injusto, nem podem evitar uma atitude injusta, ainda que reconhecendo a verdadeira. De vez em quando adoptam uma posição espiritual adequada e chegam ao autêntico silêncio e concentração. Então, por uns instantes sentem com claridade a atitude adequada. Mas isto passa rapidamente e de novo voltam os antagonismos entre o que é bom e o que é mau., justo e injusto. A estas pessoas o caminho do “coração ao coração” está-lhes ainda vedado.

c) Há pessoas que se esforçam por conseguir o equilíbrio mas estão desorientadas no início. Há entre elas pessoas que conhecem com exactidão a verdadeira atitude e que se esforçam por se livrar da falsa. Mas torna-se-lhes difícil conservar uma atitude justa.
Existem outros ainda que são conscientes da atitude adequada e limitam-se apenas em levá-la à prática sem mais.
Ambos os tipos de pessoas nunca permanecem estáticas e avançam sempre incansavelmente, o que fará com que mais tarde ou mais cedo cheguem à compreensão e canalização do Ki. Em todas elas existe o “dar e receber de coração a coração”.

d) Aquelas pessoas em que qualquer pensamento, actividade, atitude e todo o fazer e deixar de fazer revela Ki, estas são os verdadeiros mestres.

O objectivo do treino oriental do corpo e da mente é chegar à experiência pessoal de uma consciência indescritível que se funde como universo, e perceber que o Ser existe como Um com a natureza. Isto acontece quando se rompe a tensão entre o objecto, encerrado em si mesmo, e o Eu, até ao momento incapaz de o dominar. Quando chega a este momento surge da harmonia uma execução perfeita, como fruto da maturidade interna, meta final do exercício. Já não se precisa do raciocínio, porque a vontade ficou calada, o coração em repouso e o “Eu” morreu. A pessoa cauterizou o seu “Eu” com os seus sentimentos, desejos e pensamentos, tornando-o num meio transparente. Nas artes marciais novamente o mestre Shingeru Egami descreve-nos claramente o momento em que se alcança esse estado:
“É melhor começar praticando um kata simples, como o taikyoku, num grupo e com alguém a dar ordens. Deve-se praticar sem parar, dez, vinte, cinquenta vezes. Não poderá usar muito a cabeça nem esperar por isto. É preciso praticar energicamente sem pensar se o corpo está rígido ou não; só praticar fortemente. Isso é tudo.
O que acontecerá? No caso de gente jovem que goze de grande força e vigor e que pratique a kata desta forma, notarão cansaço depois de vinte ou trinta repetições, pois há um limite. Continuando a prática, ficarão ainda mais exaustos, até ao ponto de não poder estar em pé, respirando a borbotões e a sua visão nublar-se-à. Em consequência desejarão perder o conhecimento. Mas não devem parar, com o que se transformarão em autómatos e não poderão concentrar nenhuma força nos seus movimentos. Por outras palavras, não saberão o que fazem.
A esta altura notarão que os seus movimentos se tornam suaves e naturais. A mente fica inútil, mas o corpo terá obtido os movimentos. Se a prática continua, poderão chegar ao ponto em que a mente fica muito clara no que diz respeito aos movimentos do corpo. Ou podem esquecer tudo e cair no chão. Podem perder-se a si mesmos repetidamente, até descobrir que se sentem fortemente vigorizados. É então que compreenderão que caíram ou desmaiaram por esgotamento. Mas ainda assim, se escutam a voz de comando irão reagir de alguma forma, ainda que não necessariamente física. Ao mesmo tempo, chegarão a compreender a relação entre si mesmos e a pessoa que dá as ordens, a relação entre os praticantes e a relação entre corpo e mente.
Os movimentos do corpo e a fluidez de sensibilidade serão no começo algo confuso, depois aplacar-se-ão e finalmente entrarão num estado de tranquilidade e concentração e a sua respiração será regular, apesar do grande esforço dos movimentos.”

Quando recebemos o Ki universal com sentimentos positivos, como a compaixão, gera-se uma circulação de energia positiva e saudável. Por outro lado, quando recebemos a energia universal com sentimentos negativos, não damos apreso e compaixão aos outros e utilizamos a energia para querer-nos a nós mesmos, o Ki estanca-se, nascem os medos e as ansiedades, e a mente e o corpo permanecem num estado de tensão. O caminho para a saúde e bem-estar mental, físico e social abre-se onde existe uma direcção positiva e construtiva do Ki universal para todas as pessoas e todas as coisas. A essência da nossa vida é a busca da harmonia com toda a gente e com todas as coisas. O mestre Shingeru Egami analisa este ponto aplicando-o às artes marciais:
“Compaixão e consideração para com os outros, são palavras comuns, usadas frequentemente, mas levá-las á prática é sumamente difícil. Antes de chegar a realizar qualquer é de grande importância considerar não só a posição da outra pessoa, mas também compreendê-la plenamente, pois chegado a um pleno entendimento da outra pessoa, poderás alcançar a unidade com ela e verás como vitória e derrota deixarão de fazer sentido. Este é o verdadeiro segredo das artes marciais, coexistir com o teu oponente. E quando isto estiver consumado, o entendimento da essência humana far-nos-á cooperar com os outros e alcançar o nosso próprio entendimento. A prática não será completa enquanto não se alcançar este estado mental.
Começando com a prática do corpo e continuando com o treino do espírito, aprecia-se que corpo e mente não são duas coisas, mas sim uma. Esta é a verdadeira prática.”

As artes marciais adoptaram o conceito básico de Ki e pretendem alcançar a força infinita através da sua integração. Uma das técnicas básicas das artes marciais chinesas é bloquear o Ki do adversário, impedindo que este flua através dos meridianos, o que tem dado lugar a técnicas muito interessante, como a denominada “toate” (bater ou apontar ao longe), para lançar o adversário ao solo utilizando a força que proporciona o Ki, sem que exista nenhum contacto real ou físico. O domínio desta técnica é muito complicado, mas têm existido mestres que a dominam na perfeição, entre os quais se encontrava o mestre Morihei Ueshiba, fundador do Aikido, e o mestre Shingeru Egami (Shotokai).

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